segunda-feira, 4 de setembro de 2017

COMO SER UM NERD NO RIO DE JANEIRO DOS ANOS DE 1990

(Ou: Como Fui Salvo Pela João Barbalho)
Ir pra escola era uma tortura. Eu apanhava, era sacaneado, tinha medo de que fizessem coisas realmente ruins comigo. Fugia, dizia lá em casa que tinha ficado doente. Mamãe trabalhava fora, facilitava faltar as aulas. Naquela época a Sessão da Tarde vivia seu tempo de glória. Passavam Caça Fantasmas, Robocop, Um Príncipe em Nova Iorque. Foi assim que perdi voluntariamente um ano de vida no educandário. Evadi.
Minha família havia se mudado de Brasília pro Rio de Janeiro. O primeiro destino Ilha do Governador.
Brasília é um anti-Rio de Janeiro: árvores esparsas e esquisitas do Cerrado em oposição à vegetação deslumbrante da Mata Atlântica. Uma cidade nascida do triunfo da vontade patriota - alguns falam de um mérito religioso-profético. Brasília é pura teimosia às margens de um lago artificial. O Rio é um sonho de montanhas mágicas com vista pro mar infinito. Residência da Coroa Real Portuguesa, ex-Capital do País… não é à toa que o carioca é bairrista. As crianças sabem dessas coisas todas, a nível subconsciente. Fui zuado por ser o estrangeiro do planeta alienígena.
O pacote direito do garoto carioca: ser expansivo, gostar de praia, artes marciais e surf. Correr atrás das garotas, adorar samba e tocar pandeiro.
O pacote esquerdo do garoto carioca: andar de preto no calor de 40 graus. Ficar horas discutindo quem seria o vencedor de uma luta entre Batman e Capitão América. Assistir a então riquíssima MTV em UHF. Pirar com Get It Away do Red Hot Chili Peppers. Dar uns rolês de noite, mesmo com os tiroteios. Considerar garotas seres míticos que conversam com unicórnios.
Claro que eu fazia parte da turma canhota. Com 13 anos não sabia ainda.
Novamente na estrada, fomos pra Ramos, um subúrbio tocado pelo gigantesco Complexo do Alemão. O ciclo das perseguições, joelhadas na barriga e tapas na orelha parecia pronto pra recomeçar.
Mas uma coisa aconteceu.
Ao descer para o intervalo das aulas vi uma cartolina no mural de recados da escada. Era alguma coisa tipo “DUNGEONS AND DRAGONS, turma de RPG aos sábados”. O que mais me impressionou era que não era jornal, impressão ou xerox. Alguém talentoso havia desenhado um dragão incrível lutando com um cavaleiro de escudo e espada. Fiquei muito empolgado.
Foi na Escola Municipal João Barbalho que descobri o mundo em que queria estar. A diretora, Dona Janete, providenciava dinheiro pra que os próprios alunos abastecessem o acervo da biblioteca - pedia um recibo e mais nada. Não tinha censura aos títulos. Foi assim que comecei a desfrutar da leitura.
Nosso foco eram livros de “interpretação de mesa”, ou RPG - Role Play Game. Os mais bacanas estavam em inglês e a gente se esforçava pra entender.
Era uma galerinha com alguns anos a mais que a gente, um pessoalzinho bem esquisitinho que me influenciou.
O ENRICO era o desenhista que fez o cartaz de “RPG aos Sábados”. Era um filhinho de mamãe até que deixou o cabelo crescer, passou a se vestir de preto e usar coturno. Entregava 3x4 pra meninas com seu telefone escrito atrás.
O CLEBER era um nerdzão clássico. Outro desenhista virtuoso. Só que a pegada dele era japonês, anime. Usava um óculos redondo e sua mãe era danada com “essa história de RPG”: embora um rapaz genial, tinha notas medíocres em todas as matérias.
O RONDINELE era o cara estranho do recreio. Ficava encostado na parede, no fundo do pátio, calado. Diziam que ele era um lobisomem. Foi o primeiro mestre de RPG que começou uma narrativa moderna, pós masmorras e monstros.
O “MOCAVIANO” era muito alto. Acho que sua mãe era professora particular, dava aulas no quintal de sua casa. Ele tinha um quadro onde ele resolvia altas equações de dar nó no cérebro. Tinha olhinhos miúdos por trás dos óculos fundo de garrafa e dentes horrivelmente tortos. “Mocaviano” era um apelido derivado do clã dos Malkavians, vampiros anarquistas do universo do livros de “A Máscara”.
Não demorou até eu mesmo instigar aquelas maluquices entre os meus próprios colegas. Logo, toda a minha turma estava envolvida em “jogos de interpretação”.
A contra reforma viria em seguida: católicos, secularistas, testemunhas de Jeová e outros evangélicos de todas as matizes apareceram pra nos atacar. Pra essa gente nós todos havíamos nos tornados satanistas, mexendo com ocultismo, abrindo portas para drogas, sacrifícios de animais e rituais pagãos à luz da Lua.
Mas isso já é outra história…

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